Reforma Tributária: uma transição para o IBS e a CBS já inaugurada pela insegurança
A Reforma Tributária do consumo aprovada pela Emenda Constitucional 132/2023 introduz no Brasil um modelo de tributação que busca se aproximar do padrão internacional dos Impostos sobre Valor Agregado (IVA). A promessa é clara: substituir gradualmente o mosaico de tributos atuais por um sistema mais racional, capaz de reduzir distorções, simplificar obrigações e conferir maior neutralidade econômica. No entanto, esse novo modelo não nasce de forma imediata nem integral. A transição é longa, gradual e complexa, envolvendo a convivência de tributos atuais e novos por vários anos. É dentro dessa convivência que surgem os maiores desafios.
A partir de 2026, o contribuinte passa a operar sob uma arquitetura híbrida, na qual as bases do sistema atual ainda produzem efeitos relevantes ao mesmo tempo em que o novo modelo começa a gerar impactos concretos. Essa convivência se intensifica com a extinção, já em 2027, do PIS e da COFINS, substituídos definitivamente pela CBS, enquanto tributos como ICMS e ISS continuarão vigentes, com alíquotas progressivamente reduzidas, até 2032, coexistindo com IBS e CBS. Ou seja, o país já experimentará o novo sistema antes que o atual seja inteiramente extinto. Nesse cenário coexistente, uma dúvida assume protagonismo e se converte em um dos pontos mais sensíveis do período: os novos tributos devem ou não integrar a base de cálculo dos tributos que ainda permanecem?
A resposta parece técnica, mas determina efeitos econômicos imediatos. O problema nasce logo na fonte: nem a EC 132/2023 nem a LC 214/2025 afirmam com clareza se o IBS e a CBS devem compor a base do ICMS e do ISS durante a transição. A Constituição estruturou o novo sistema, mas não enfrentou expressamente a interação entre regimes; a LC 214/2025, por sua vez, apenas detalhou essa transição, reproduzindo o silêncio constitucional. A versão original da PEC 45/2019 chegou a prever a exclusão dos novos tributos das bases dos antigos, mas esse dispositivo foi retirado antes da promulgação, abrindo uma lacuna interpretativa que rapidamente se tornou fonte de controvérsia.
Essa indefinição normativa abriu espaço para interpretações divergentes entre os entes tributantes e, até agora, com conclusões que não seguem uma linha uniforme. O Estado de Pernambuco, inicialmente, por meio da Resolução de Consulta 39/2025, havia adotado uma leitura mais rígida ao afirmar que o IBS e a CBS deveriam integrar a base do ICMS já em 2026, mesmo sendo um ano de testes voltado apenas à calibragem das alíquotas. Poucos dias depois, porém, o Estado revisou seu entendimento e publicou esclarecimento oficial indicando que, diante do caráter exclusivamente informativo dos valores destacados na nota fiscal, o IBS e a CBS não irão compor a base de cálculo do ICMS em 2026.
O Estado de São Paulo, por sua vez, desde o início, já havia sinalizado nessa mesma direção ao reconhecer que não existe base econômica real que justifique a inclusão no primeiro ano da transição. Ainda assim, a ausência de manifestação da maior parte dos Estados mantém o cenário de incerteza às vésperas do início da transição.
O judiciário, por sua vez, ampliou esse cenário nebuloso ao indeferir os primeiros pedidos liminares que buscavam afastar a inclusão do IBS e CBS na base do ICMS e do ISS. As decisões iniciais proferidas em São Paulo e Minas Gerais destacaram a ausência de norma clara que proibisse a inclusão e sustentaram que eventuais correções poderiam ser realizadas posteriormente, mediante compensação, afastando a urgência necessária para decisões antecipada. Mesmo adotando esse enfoque mais processual, as decisões acabam evidenciando que ainda não há uma orientação sólida sobre o tema, deixando tanto contribuintes quanto os próprios fiscos sem uma referência segura de como proceder.
Diante desse quadro, o contribuinte se vê lançado em um verdadeiro limbo jurídico. A proximidade de 2026, aliada ao silêncio de grande parte dos Estados e às divergências já existentes entre os que se manifestaram, torna praticamente impossível adotar uma conduta padronizada em nível nacional. Operações idênticas podem receber tratamentos fiscais distintos conforme a jurisdição, comprometendo a previsibilidade e colocando em risco a formação de preços, a revisão de contratos, o planejamento tributário e a própria segurança das decisões empresariais. A inexistência de um entendimento uniforme transforma decisões que deveriam ser rotineiras, como recolher, não recolher, provisionar ou contestar, em escolhas feitas sob incerteza e sem parâmetros claros de risco
Esse cenário ainda se complica por um ponto adicional: como em 2026 os valores referentes ao IBS e à CBS terão apenas caráter demonstrativo, sendo destacados na nota fiscal sem gerar recolhimento efetivo, desde que a obrigação acessória seja cumprida, não há até o momento qualquer orientação dos órgãos reguladores sobre o tratamento na contábil, seja quanto ao registro ou à eventual criação de contas específicas, já que não representam tributo devido, receita pública ou qualquer entrada ou saída financeira. Essa indefinição cria um vazio operacional, pois o contribuinte terá de emitir documentos fiscais contendo montantes que aparecerão formalmente na nota, mas continuará sem parâmetros claros para decidir se esses números devem ou não integrar sua escrituração contábil.
A superação desse quadro exige uma definição clara e precisa sobre a forma de interação entre o IBS, a CBS e os tributos que permanecem durante a transição, especialmente no que se refere à composição da base de cálculo do ICMS. Essa solução pode vir do próprio legislador, por meio de norma específica que esclareça o alcance da transição, ou do STF, caso seja provocado a uniformizar a
interpretação em âmbito nacional. Enquanto isso não ocorre, o país avança para o início do novo modelo convivendo com lacunas operacionais, entendimentos divergentes e decisões judiciais que evitam enfrentar o mérito.
A reforma segue adiante, mas a travessia permanece marcada por incertezas relevantes. E, nesse intervalo, quem mais sente os efeitos é o contribuinte, que precisa tomar decisões imediatas em um ambiente em que as regras básicas ainda não oferecem a estabilidade necessária para operar com segurança.
Por Ricardo Miranda



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